Debate deu o tom da tarde desta sexta-feira no II Fórum Futuro da Regulação, na Academia das Ciências de Lisboa.


A transformação acelerada do sistema financeiro, impulsionada pela digitalização, pelo avanço das fintechs e pela emergência dos criptoativos, colocou novos desafios ao equilíbrio entre concorrência e prudência regulatória. Foi este o ponto de partida do painel Regulação do Sistema Financeiro no Século XXI: Entre Concorrência, Prudência e Integridade, no II Fórum Futuro da Regulação, no qual especialistas alertaram para a necessidade de atualizar modelos de supervisão, fortalecer a atuação das autoridades e preservar a confiança num setor em rápida mutação.
Matilde Lavouras, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, abriu o painel partilhando um pouco daquilo que é a sua investigação académica, centrando parte da sua fala no universo dos criptoativos. Destacou que, nos últimos anos, assistimos ao surgimento de novas formas de pagamento e à expansão de intermediários financeiros em ambientes marcados pela descentralização e pela criação de moedas privadas, um movimento que desafia diretamente o tradicional monopólio da moeda.
Sublinhou ainda a elevada volatilidade das criptomoedas, que as afasta da estabilidade exigida a instrumentos financeiros convencionais. Em Portugal, lembrou que não existe proibição à emissão de criptoativos, entretanto, salientou que o país não vive um cenário de desregulação: o setor é enquadrado pelo Regulamento Europeu dos Mercados de Criptoativos (MiCA), que entrou em vigor em toda a União Europeia a 31 de dezembro de 2024, estabelecendo regras uniformes, maior proteção ao consumidor e segurança jurídica. Matilde mencionou ainda que existe uma proposta em discussão no governo para aprofundar este enquadramento nacional.

Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Ricardo Villas Bôas Cueva chamou a atenção para o crescimento expressivo das fraudes no sistema bancário, um fenómeno que tem chegado cada vez mais ao Judiciário. Para o ministro, a evolução digital ampliou substancialmente as possibilidades de fraude, existindo hoje um volume significativo de casos.
Cueva destacou ainda a existência de um “vácuo regulatório em diferenciar o que é fintech, instituição financeira e maquininhas”. Também alertou para os riscos de deixar que o Judiciário acabe, na prática, assumindo funções regulatórias, não como uma recusa de atuação judicial, mas como um aviso sobre os limites institucionais.
Por fim, citou episódios recentes no Brasil, classificando-os como “simplesmente inaceitáveis, uma quebra sistémica que não poderia acontecer”, e defendeu que “a instituição Banco Central tem que ser repensada no mundo digital”.
Tudo sobre o II Fórum Futuro da Regulação
Também presente no painel foi Isaac Sidney, presidente da Federação Brasileira de Bancos. Com quase 18 anos de experiência no Banco Central, lembrou que as diferentes gestões focaram, em momentos distintos, nos riscos tradicionais do setor, como o risco de mercado e risco operacional, mas que o cenário atual exige atenção redobrada a novos riscos surgidos com a transformação digital. Para ele, a regulação moderna deve perseguir simultaneamente robustez, inovação e integridade

Ao comentar a pluralidade do sistema de pagamentos, Isaac defendeu uma revisão do paradigma regulatório: “qual deveria ser hoje a base de uma regulação: a atividade”, afirmou, sublinhando que já não é possível regular apenas a partir da tipologia institucional. Segundo ele, o setor enfrenta “novos padrões comportamentais” e, embora a indústria bancária sempre tenha sido pioneira em inovação, o grande desafio atual é equilibrar o avanço tecnológico com a necessidade de resiliência e a preservação da integridade.
Eduardo Lopes, presidente da Zetta, apresentou a visão das grandes fintechs que compõem a associação e destacou a transformação profunda vivida pelo sistema financeiro brasileiro nos últimos anos. Recordou que, em pouco tempo, o país praticamente duplicou o número de clientes ativos no sistema financeiro, incorporando milhões de novos usuários e ampliando de forma expressiva a inclusão financeira.

Segundo Lopes, esse crescimento expressivo, com um volume de usuários ativos quase quatro vezes maior do que há cinco anos, reflete a força da inovação promovida pelas fintechs e a mudança estrutural nos hábitos de consumo financeiro no Brasil. Representando empresas que atuam para ampliar a competição, a inclusão financeira e a satisfação dos consumidores, Lopes ressaltou que esses dados ilustram “uma mudança drástica” na forma como os brasileiros se relacionam com serviços financeiros digitais.
O painel foi moderado por Cristiane Coelho, professora do IDP e presidente da FIN, que durante o debate destacou como a dinâmica concorrencial do sistema financeiro mudou profundamente na última década. Segundo ela, “a história vem mostrando que a concorrência foi mantida com a entrada de novos participantes”, impulsionada tanto pela explosão do mercado de capitais quanto pelo avanço das fintechs. Cristiane lembrou que os bancos tradicionais passaram a enfrentar competição em duas frentes — investimentos e serviços de pagamento, como o ecossistema das maquininhas — e que isso os obrigou a compreender essa nova realidade “sem perder a sua própria identidade”. Reforçou ainda que, apesar das transformações tecnológicas, continua essencial preservar a segurança, a integridade e a confiança no setor financeiro.